Os inquéritos por questionário visam por vezes medir atitudes e comportamentos que os inquiridos têm dificuldades em admitir, especialmente quando essas atitudes e comportamentos são potencialmente sujeitos a censura social ou moral. É o caso quando se colocam questões sobre a abstenção (vista por muitos como "dever cívico"), o consumo de drogas, a violência doméstica, práticas sexuais, evasão fiscal ou o aborto, só para dar alguns exemplos. William Foddy, no livro Constructing Questions for Interviews and Questionnaires (traduzido e editado em português pela Celta como Como Perguntar?) tem um capítulo inteiro dedicado ao assunto.
Era isto que, à partida, me interessava saber sobre o estudo feito para a APF. Lendo o relatório, verifica-se que foram tomadas duas principais medidas para lidar com o assunto. Por um lado, para inquirir presencialmente as 2000 mulheres entre os 18 e os 49 anos seleccionadas aleatoriamente para fazerem parte da amostra, foram apenas utilizadas entrevistadoras (e não entrevistadores). A pressuposição é que, num tema como este, mulheres se sentirão mais à vontade respondendo a mulheres. A segunda medida, segundo o relatório, foi a de aplicar todo o bloco de perguntas sobre "práticas de aborto" em sistema de auto-preenchimento, ou seja, preservando o anonimato também perante as próprias entrevistadoras.
Nunca se sabe se isto é suficiente, mas alguma coisa se fez, e quase tudo o resto que se pode fazer tem mais a ver com a formação dos entrevistadores e a confiança que conseguem transmitir aos entrevistados. Seja como for, há algo que é praticamente certo: a percentagem estimada neste estudo para as mulheres entre os 18 e os 49 anos que já fizeram um aborto não espontâneo (14,5%) deverá estar a subestimar os valores reais. Não é que não haja factores que também podem levar à sobrestimação: as mulheres mais dispostas a responder a estas perguntas poderão, eventualmente, tender a partilhar valores que, também eles, mais as predispõem a ter feito uma IVG. Mas os factores no sentido contrário - o da subestimação - tendem a ser muito mais fortes. Só para dar um exemplo, um estudo de 2001 realizado em New Jersey, onde se confrontaram os resultados de um inquérito por questionário com os registos médicos de mulheres cobertas pelo Medicaid, mostra que apenas 29% dos abortos efectivamente realizados foram reportados nas respostas aos inquéritos. Não estou a dizer que a subestimação, neste inquérito em Portugal, será da mesma ordem: as diferenças do contexto são tão grandes que essa inferência é impossível. Mas há muitas razões que nos fazem supor que a subestimação exista (cf. artigo e referências citadas). O que, por sua vez, obriga a alguma cautela quando se afirma que a maior parte das IVG's têm lugar até às 10 semanas: há razões para pensar que o "underreporting" seja maior quando o aborto acontece mais tarde...
Quanto ao resto, seria realmente bom que o estudo fosse disponibilizado de forma a que todos lhe pudessem ter acesso. Para além do interesse substantivo dos resultados, há várias coisas a discutir: a selecção da amostra (que tem apenas explicação sumária no relatório); a opção de restringir o universo a mulheres com 18 anos ou mais (por que não ter começado aos 15, como é prática comum em estudos semelhantes?), o facto de não se distinguir claramente as IVG's realizadas ao abrigo da lei vigente das restantes; etc.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário