Em parte em comentário ao que Luís Campos e Cunha escreve no Blog da Sedes, tenho alguma dificuldade em compreender por que razão o Presidente não optou, em qualquer momento deste processo, por enviar o Estatuto dos Açores para fiscalização preventiva pelo Tribunal Constitucional. Há muito tempo que não me debruço sobre estes temas, o assunto é muitíssimo complicado, não sou jurista e podia escrever mais alguns "disclaimers". Mas para abreviar, acho que fez mal, por várias razões:
1. A apreciação que o Presidente fez do Estatuto na sua comunicação ao país de ontem (assim como na do Verão passado) não deixa margem para dúvidas: sem nunca usar o termo, não há dúvida que o Presidente entende que o Estatuto é inconstitucional. Se assim entende, então não pode argumentar que fez "tudo o que estava ao [seu] alcance para defender os superiores interesses do Estado". Não fez uma coisa: solicitar ao supremo intérprete da constitucionalidade das leis que faça o seu trabalho em relação uma lei que o PR entende ser inconstitucional.
2. Ao não o fazer, abre caminho a uma série de interpretações - todas provavelmente ilegítimas, mas não por isso menos possíveis de tentar fazer vingar na opinião pública - sobre a sua actuação, nomeadamente a de que suspeita que o Tribunal não apoiaria a sua interpretação ou até de que suspeita que o Tribunal seria influenciado pelos interesses partidários que criticou na sua comunicação. Ao não pedir a fiscalização, o Presidente, mesmo que involuntariamente, desvaloriza o TC.
3. Faz ainda uma outra coisa. O TC, na fiscalização preventiva, serve para precisamente para confirmar ou infirmar dúvidas que o Presidente tenha sobre a constitucionalidade das leis. E serve especialmente para evitar que leis inconstitucionais entrem em vigor. O que vai suceder, contudo, é que uma lei que o Presidente entende ser inconstitucional vai acabar por entrar em vigor. E vai entrar em vigor sem que o intérprete supremo se tenha pronunciado sobre o que retém (ou não) da interpretação do Presidente. Cria-se assim na opinião pública uma sensação perturbante: a de que, no nosso sistema, é possível que entrem em vigor leis inconstitucionais, ou que o Presidente entende serem inconstitucionais, sem que haja uma última palavra sobre se são inconstitucionais ou não.
4. Num plano ainda mais "político" da questão, ter enviado a lei pra o TC teria evitado ainda outras interpretações, nomeadamente a de que o tema com que Presidente se preocupou mais até agora no seu mandato foi um tema ligado aos seus próprios poderes. A comunicação ao país procurou infirmar esta ideia. Mas ela teria sido infirmada mais eficazmente se a questão tivesse sido deslocada da discordância política do Presidente com o estatuto e com o comportamento dos agentes políticos para o plano mais "abstracto" da adequação da lei à nossa ordem constitucional.
5. Mais geral ainda: na afirmação de que "não se trata apenas de uma questão jurídico-constitucional" há uma desvalorização implícita do que é "jurídico-constitucional". O que a Constituição - e a sua interpretação - fazem é, precisamente, lidar com "os fundamentos essenciais que alicerçam o nosso sistema político" ou "o relacionamento entre órgãos de soberania". De resto, a Constituição e o seu intérprete até fazem muito mais do que isso. Logo, dever-se-ia olhar para isto ao contrário daquilo que fez o Presidente: não se trata apenas de uma questão política, é também uma questão jurídico-constitucional, ou seja, é a questão mais importante de todas na nossa vida colectiva.
6. Agora, mesmo que seja pedida fiscalização sucessiva, quem conhece e estudou o Tribunal sabe o que vai suceder: a decisão só será conhecida daqui a muito tempo, e quase ninguém vai dar por isso, mesmo que a decisão seja desfavorável. Todos os efeitos negativos anteriores já terão ocorrido e sem correcção possível.
7. O plano mais "político" de todos é o menos interessante: se o Presidente sai fortalecido, ou enfraquecido ou nem uma coisa nem outra no fim disto tudo em relação ao governo do PS. Não sei. Mas no nosso sistema, em face de uma maioria absoluta, o veto e a fiscalização preventiva são as "armas dos fracos". A sua eficácia é limitada ou incerta para colocar obstáculos directos às maiorias. Mas o seu uso é indispensável para legitimar outras formas de actuação junto da opinião pública. Caso contrário, com o devido respeito, "ladra-se", mas não se "morde". A "autoridade moral" precisa de vir com alguma artilharia por detrás.
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3 comentários:
Pedro:
Para mim o problema é um pouco mais fundo. "To make it short", pergunto-me se um regime semi-parlamentar como o português (quase de presidencialismo bicéfalo), depois de esgotado o período de transição inicial (até à adesão à então CEE, digamos assim e em termos mtº gerais), ainda continua a fazer sentido ou não constituirá sempre um potencial factor de desestabilização ou perturbação das instituições. Tendo dito isto, sou de há muito adepto que o regime deveria caminhar para o parlamentarismo, tal como acontece c/ as democracias mais antigas e consolidadas na UE (não conheço bem o caso finlandês e no caso da França semi-presidencialista todos conhecemos bem o que esteve na sua génese), após o período de re-eleição do actual presidente. Gostaria de ter a sua opinião.
Um Bom Ano
JC
Pedro Magalhães
Nesta questão, pelo que vi existem duas posições que podem ser "agregadas" a duas opiniões publicadas: a sua e a do Prof Campos e Cunha.
Estou a 100% a favor da posição do PR e, ao contrário de outros, nem sequer acho que conduziu mal o problema.
Deixe_me apresentar a questão com um pequeno exemplo.
Na bicha do supermercado para a caixa com limitação de volumes, encontra-se uma família de três pessoas. No momento de pagar, dividem por igual os volumes que transportam e cada um passa com os volumes máximos permitidos.
Calculo que já lhe deve ter sucedido ou conheçe este tipo de "estórias" em Portugal. O comportamento descrito não violou a letra, mas sim o espírito.
A solução para este caso passa pela gerência do estabelecimento que reporá a "legalidade" isto é, fará aplicar o "espírito" da norma.
O problema é que não podemos aplicar esta solução quando se trata de orgãos de soberania que, por definição e função, criam as normas. Remeter para o aspecto jurisdicional é desresponsabilizar polticamente o comportamento e as acções da AR e do Governo, desiquilibrando a arquitectura dos poderes.
No actual ordenamento não é possível a solução aprovada e proposta pela AR e, em certo sentido sufragada/acompanhada pelo Governo; estes dois orgãos sabiam e, mesmo assim, teimaram. A mensagem é clara: as regras cumprem-se se nos derem jeito, senão, não se cumprem.
Ora, se a solução que desejam era/é a que ficou sufragada, mudem a Constituição e abram caminho aos partidos regionais e outras fórmulas similares.
O problema de fundo é o respeito pelas regras, funções e equilíbrios dos orgãos de soberania, em suma da arquitectura do Estado. Quando não se tem esse respeito, estamos mal
Neste sentido, a posição do PR e a sua conduta são claras: fui eleito para defender o Estado tal como se encontra arquitectado, não para ser cumplice da sua perversão.
Acho que assim fica muito mais claro, não acha?
Cumprimentos
Adriano Volframista
Pedro,
gosto muito de o ler e faço-o há muito tempo. Aliás, devo ter sido dos primeiros, perdoe-me a presunção, a perceber, quando começou a aparecer na TV, que estava ali alguém sério, estudioso, correcto, afável.
De qualquer forma, noto que, de tempos a tempos, faz uns "posts" um bocadinho enviesados (ao contrário das suas belíssimas sondagens), sobretudo em questões mais políticas e menos técnicas (onde, de facto, é muito bom!).
Não creio que tenha razão e até estranho que tenha escrito, designadamente, os números 2 e 6. Não parecem seus.
Talvez seja eu que esteja a ficar azedo, mas lido mal (pecador, me confesso) com a falta de carácter, a incompetência, o compadrio, a falta de ética e de Estadismo... enfim, somos o povo que somos e temos os políticos que temos!
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