quarta-feira, fevereiro 06, 2013

Nós

Há muita gente chocada com as declarações de Fernando Ulrich. Aparentemente, é um problema de "falta de sensibilidade social" ou até de "mau gosto". Mas não me parece que essa seja a questão mais interessante. Afinal, se formos ler o que realmente disse, veremos como assinalou o sofrimento dos sem-abrigo, e nada me faz supor que semelhante sentimento - "sensibilidade", "compaixão", o que lhe quisermos chamar -  não seja genuíno. O que me chama a atenção é outra coisa.

É aquele "nós":

"Se andar aí na rua e infelizmente encontramos pessoas que são sem-abrigo, isso não lhe pode acontecer a si ou a mim, porquê? Isso também nos pode acontecer", disse na conferência de Imprensa. "Se as pessoas que vemos ali na rua, naquela situação a sofrer tanto aguentam, porque é que nós não aguentamos?"

Há pouco tempo, reli um artigo de Frederick Solt sobre desigualdade e nacionalismo. Solt começa por citar Hobsbawm, Tilly, Dahl e até Rosa Luxemburgo em favor de uma ideia simples: a de que "o conceito de 'nação' como uma entidade social e política homogénea" é em parte um "véu" que oculta a desigualdade de condições e os interesses antagónicos dos membros dessa entidade. Segue-se uma hipótese: a de que, quanto maiores forem os níveis de desigualdade de rendimentos numa sociedade, maior a propensão dos seus membros para se mostrarem "orgulhosos da sua nação" e "emocionalmente ligados" ao seu país. Solt confirma a hipótese recorrendo a dados do World Values Survey, e conclui que isto apoia uma "teoria diversionária" do nacionalismo:

"When economic inequality in a country is greater, the state will generate more nationalism in its citizens so as to divert their attention from their diverging conditions and forestall demands for redistributive policies."

Não sei se concordo com a ideia de que as elites políticas tenham sempre o poder suficiente e até partilhem os incentivos para promoverem essa unidade ilusória em contextos de elevada desigualdade, nem com a ideia de que essa unidade é meramente ilusória (afinal, os "países" e as comunidades políticas também têm interesses antagónicos em relação a outros países e outras comunidades). Mas é difícil não recordar que o elenco de argumentos políticos a favor das políticas de austeridade, aqui e noutros países, passa frequentemente pelo apelo ao "interesse nacional", à partilha de responsabilidades e "culpas", dos mesmos deveres de "aguentar" e dos benefícios que supostamente daí advêm para "todos". De resto, um dos argumentos - plausível - que venho ouvindo em conversas sobre a forma "ordeira" como os portugueses têm lidado com os sacrifícios da estabilização orçamental é precisamente a nossa forte unidade nacional e o sentimento de pertença a uma mesma comunidade.

Não sei bem por que razão os políticos conseguem recorrer a este tipo de discurso com relativa impunidade. Talvez por a sua legitimidade advir do "povo", porventura outra ficção, mas de alguma forma consubstanciada, em democracias, em eleições livres e regulares.  Mas essa é uma impunidade de que Ulrich não pôde beneficiar quando apelou a estas semelhanças entre "nós" em torno dos "sacrifícios". Talvez porque tenha inadvertidamente introduzido um "eles" (os sem-abrigo), ou mais provavelmente por ser um membro visível da nossa rarefeita elite social e económica, Ulrich acabou por chamar a atenção para o facto de que, pelo menos de um certo ponto de vista, não há qualquer espécie de "nós" ao qual ele, o seu motorista, um sem-abrigo, eu, e vocês que me estão a ler possamos todos simultaneamente pertencer. Como me recordava há dias um amigo, a esperança de vida dos sem-abrigo britânicos é de 47 anos, e nada faz supor que a dos portugueses seja superior. 72% dos portugueses afirmam ter dificuldades em pagar as contas ao fim do mês. Por detrás do "véu" da unidade nacional, aquilo que cada um tem de aguentar e como aguenta é, afinal, muito diferente. Ulrich ajudou assim a desfazer esta amável ilusão de unidade, relembrando-nos que a profunda desigualdade da nossa sociedade é também uma desigualdade perante os "necessários sacrifícios". Talvez lhe devêssemos agradecer o serviço prestado.

Depois disto, espera-se também que os espíritos mais atentos detectem outras situações comparáveis. Como quando alguns sindicatos e até partidos invocam os interesses dos "trabalhadores", quando é patente que os interesses que defendem são os de uma parte, cada vez mais pequena, daqueles que trabalham, normalmente contra os interesses da outra parte. Ou quando muitos patrões que falam dos interesses das empresas, da "criação de emprego" ou - acaba quase sempre aí - dos "apoios do estado" estão, de facto, a representar os interesses de uma parte das empresas, normalmente as que vivem do mercado interno. Etc, etc, etc. Na verdade, o que há mais é disto.

9 comentários:

António Almeida disse...

Eu não sei o que O Ulrich, o Azevedo, o Santos, o Amorim entre outros pagam, mas de certeza que chega aos 55%.

A desiguladade na taxa progresiva, é um aguentas, ele se disse aguentam, é porque tb aguenta. melhor que eu.

O problema de Portugal, é não ter muitos Ulrich.

Como o Otelo disse.

Eu quero acabar com os ricos, bem, eu não vou por aí eu quero acabar com os POBRES.

Beko disse...

Chega aos 55% de quê? Do salário? Pois.

Beko disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
andré disse...

Queria apenas dizer que este deve ter sido o melhor artigo de opinião que li este ano. E que merecia aparecer num jornal.

André

Fahud disse...

Faço minhas as palavras do André. Felicitações pela lucidez e objectividade.
Pedro

António Pedro Pereira disse...

António Almeida:
O caro amigo interiorizou completamnente o dispositivo ideológico que legitima a «teoria» do nós patriótico, a qual perpectua a desigualdade.
Não percebeu a quemn pertence essa frase?
Ou também faz parte desse mini-elite que se toma pelo país?

Unknown disse...

Não sei se, por ser demasiado severa a crise actual, o "nós" não se estará a esboroar e a ser substituído pelo "eles".
Se repararem bem, ninguém quer assumir a paternidade da (des)governação e (falta de) supervisão económica e financeira.
Daí que se ouça, na rua e até na opinião publicada, "a troika que o vá buscar aos offshores", "a dívida não é minha", "o Cavaco/Sócrates/Constâncio (identificar a gosto) que paguem o que gastaram".
Aliás, creio que a docilidade do povo é mais aparente do que real e, no fundo, confunde-se com covardia ou impotência ou, o que seria pior, falta de patriotismo ou de amor-próprio. É por isso que o nosso caso é tão diferente do islandês, do espanhol ou do irlandês... É único, como sempre!

Anónimo disse...

Esse/este nós inclusivo que exclui. Este país está tão podre, que fede pela boca das ditas figuras publicas.

Acabe-se com os pobres e não com os ricos, mas não é à fome.

Grande texto. Parabéns.

Abraço.

Rui disse...

No outro dia, Maria de Belém mostrava, na SIC Notícias, dois gráficos:o primeiro mostrava como as pessoas em situação normal morrem de idade avançada, mostrando naturalmente que a mortalidade aumenta nos patamares mais elevados da idade. O segundo mostrava a mortalidade dos sem-abrigo se viam que poucos chegavam a esses patamares, morrendo todos eles bastante novos.