Ao longo deste fim de semana, nas redes sociais, nos editoriais dos jornais e nas colunas de opinião, li muitas vezes que o acórdão 187/2013 basicamente implica que, em Portugal, e com este Tribunal Constitucional, é impossível fazer consolidação orçamental pelo lado da despesa, nomeadamente cortando salários à função pública. O próprio Primeiro Ministro, no seu discurso de hoje ao final da tarde, afirmou que “não aceita aumentar mais os impostos, que parece ser a solução que o Tribunal Constitucional favorece nas suas interpretações.”
Não sou jurista, e receio que me passem ao lado muitas subtilezas ou que esteja a ser
ingénuo. Por favor corrijam-me se for esse o caso. Mas o que eu leio no acórdão é o seguinte (paráfrases e sublinhados meus):
1. Páginas 116 a 121, pontos 33 a 35: os juízes do TC (todos, maioria e vencidos) acham que é perfeitamente legítimo ao legislador tratar os funcionários públicos de forma diferente dos trabalhadores do sector privado. Isso inclui reduzir os seus salários. O legislador democrático tem eventualmente outras opções, mas reduzir as remunerações de quem é pago por verbas públicas não é, em si mesmo, uma arbitrariedade.
2. Páginas 122 a 123, pontos 37 e 38: o TC acha que, apesar de ser aceitável diferenciar trabalhadores do
sector privado de trabalhadores do sector público, e apesar de o
princípio da igualdade exigir mesmo que o que é desigual seja desigualmente
tratado, é também preciso que o tratamento diferenciado seja proporcionado, i.e. que
não seja excessivamente desigual.
3. Páginas 127 a 129, ponto 41: a maioria dos juízes do TC nota que o legislador já argumentou várias vezes, seja para o OE 2011 seja para o OE 2012, que o corte de salários era a única maneira de, a curto prazo, cumprir compromissos com instâncias internacionais. Mas à medida que o tempo passa, essa invocação de excepcionalidade, feita agora novamente para o OE2013, vai-se tornando cada vez menos válida. É cada vez mais exigível ao legislador que encontre soluções alternativas ao tratamento excessivamente diferenciado de diferentes categorias de trabalhadores, nomeadamente tomando outras medidas de redução da despesa pública. Por outras palavras, quando mais tempo passa, menos toleráveis se tornam possíveis excessos de diferenciação entre diferentes categorias de trabalhadores.
4. Páginas 129 a 139: a maioria dos juízes do TC acha que a suspensão de pagamento de subsídio de férias ou equivalente e
a redução de compensação de trabalho extraordinário, subsídio doença e
ajudas de custo, medidas que se acrescentam às reduções de 3.5% a 10% para salários na função pública acima de 1500 euros, à proibição de valorizações remuneratórias decorrentes de promoções ou progressões, e à proibição de prémios de gestão a gestores de empresas públicas (OE 2011 e 2012), assim como ao aumento generalizado da carga fiscal a todos os trabalhadores (OE 2013), configuram, no seu conjunto, um tratamento excessivamente desigual dos trabalhadores pagos com verbas públicas.
É isto, acho eu. A declaração dos cinco juízes que votaram vencidos também é interessante. Nela se defende que a situação orçamental do país mudou consideravelmente em relação ao acórdão anterior, que esta matéria sobre a qual o TC se está a pronunciar exige um escrutínio menos intenso (dando mais latitude ao legislador) sobre desigualdades de tratamento do que em matérias sobre as quais a Constituição explicitamente proibe desigualdades de tratamento, e que, no seu juízo de inconstitucionalidade, o TC se fundou em dados indemonstráveis (no ponto 3 acima) e se atribuiu uma competência que devia ser do legislador (ao fazer o juízo do ponto 4 acima).
Mas vão ler, que eu posso estar a fazer uma leitura errada. Eu sei que agora interessa a várias partes descrever a decisão do tribunal como tendo sido "radical". A uns para manterem credibilidade externa e passarem culpas internas. A outros para descreverem o governo como ilegítimo e apresentarem o TC como última trincheira. Mas o acórdão deve ser o que lá está escrito, não o que uns e outros queiram fazer dele para esconderem as suas próprias incapacidades e interesses. E quer o acórdão quer as declarações de voto são, em grande medida, aquilo que nos tem faltado: uma conversa séria sobre o nosso passado recente e sobre o nosso futuro próximo, e uma conversa em que, para variar, quer os juízes cuja opinião venceu quer aqueles que sairam derrotados nos tratam a nós e à nossa Constituição como soberanos.
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