Muito do que tenho lido na blogosfera e na imprensa sobre o caso dos cartoons - especialmente quando se colocam as coisas em termos como a "defesa dos valores ocidentais" - faz-me pensar naquilo que investigação empírica na área da opinião pública e da cultura política nos diz sobre o tema da "tolerância", ou seja, "a disponibilidade para permitir a expressão de ideias e interesses a que nos opomos".
Os clássicos são os livros de Herbert McClosky e John Sullivan, e as conclusões não são particularmente surpreendentes: quando as questões são colocadas em abstracto ("Acredita na liberdade de expressão para todos, sejam quais forem as opiniões expressas?", por exemplo), a maioria dos cidadãos tende a manifestar concordância. É por aqui, contudo, a defesa do "Ocidente" como bastião da tolerância e da liberdade começa a esboroar. Vale a pena (a propósito deste assunto e de muitos outros) ler isto (.pdf) com alguma atenção, onde se mostra que aquilo que realmente distingue as opiniões públicas dos países ocidentais e islâmicos não é a posição dos indivíduos sobre os ideais e valores da democracia política mas sim as suas posições sobre valores sociais, tais como a liberalização dos costumes ou a igualdade entre os sexos. Há um choque de civilizações sim, mas não onde normalmente se julga...
Mas a coisa complica-se ainda mais quando se aprecia até que ponto vai realmente a "tolerância" dos "ocidentais": uma coisa é a resposta "ideológica" e "normativa", outra coisa é a resposta concreta em relação aos direitos de grupos concretos. É sabido, inquérito após inquérito, que nos Estados Unidos, por exemplo, mais de dois terços dos cidadãos, após estimulados a seleccionar um grupo social cujas opiniões ou comportamentos mais deplore, responde depois sem hesitar que um membro desse grupo não deveria poder ensinar em escolas públicas, fazer manifestações, ou ter uma coluna de opinião no jornal. E as coisas pioram quanto mais próximo do inquirido se coloca a acção: a recusa de manifestações desse grupo na cidade onde se vive é ainda mais acentuada do que a recusa genérica.
E se pensam que isto é um fenómeno americano, think again: se se pode dizer alguma coisa é que na Europa os níveis de intolerância política tendem a ser mais elevados que nos Estados Unidos, desde que se coloquem os indivíduos perante grupos concretos (e não abstracções piedosas).* Isto apesar dos objectos concretos da intolerância variarem de sociedade para sociedade (sendo que na Europa um desses objectos tendem a ser as minorias étnicas, enquanto que nos Estados Unidos tendem a ser grupos políticos ou minorias sociais). A tolerância tem limites, que só são largos quando tudo se passa ao nível da mais pura abstracção. E é selectiva, sendo maior quando mais se aplica a um grupo ou interesse com o qual menos antipatizamos.
Não me surpreende, por isso, que alguns daqueles que (e bem, para o meu gosto) agora se colocam ao lado da liberdade de expressão sejam também aqueles que, há bem pouco tempo, acusavam os que criticavam as limitações aos direitos cívicos dos ingleses e dos americanos a propósito do Prevention of Terrorism Act ou do Patriot Act de "tibieza" em relação ao terrorismo e desígnios anti-ocidentais. De facto, como a pesquisa demonstra, a "tolerância" e a "liberdade" têm dias.
*Ver, por exemplo, M. Peffley e R. Rohrschneider, "Democratization and Political Tolerance in 17 Countries", Political Research Quarterly, Vol. 56, 2003.
quinta-feira, fevereiro 09, 2006
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