segunda-feira, dezembro 03, 2007

Ainda a Venezuela e a "democracia", pós-referendo

A principal razão por que me interessa discutir se a Venezuela é ou não uma democracia é talvez um pouco diferente daquela que move alguns dos que têm debatido esta questão na blogosfera e fora dela. É evidente que não simpatizo com os atropelos de Chávez e que , independentemente dos benefícios ou não que tenham decorrido da sua governação para os venezuelanos (um aspecto sobre o qual se presume muito e demonstra pouco), acho que viver em democracia é um bem em si mesmo, algo intrinsecamente positivo.

Mas para além desta motivação assumidamente política, tenho outra, que talvez até seja mais importante para mim. Quando quero perceber, na minha actividade profissional, o que causa a emergência ou a sobrevivência das democracias, quais as consequências de se ter ou viver num regime democrático, ou a explicação dos comportamentos políticos nas democracias, convém-me ter no bolso pelo menos uma definição qualquer de "democracia", para saber que casos devo incluir, que casos excluir ou como os classifico. Num sentido mais lato, esta discussão continua a ser "política". Mas num sentido mais estrito, é uma questão de medição. O que é e o que não é uma democracia? Questão complicada, mas que tenho de quotidianamente tentar resolver.

Vem tudo isto a propósito dos resultados do referendo e de algumas reacções que inspiraram. Particularmente simbólica é esta:

"Estranha ditadura que promove eleições e que aceita os resultados quando é derrotada nas urnas. (...) Estranha ditadura em que a pobreza diminui e em que os estudos internacionais mostram que a maioria esmagadora dos eleitores está contente com a qualidade da democracia",

escreve Nuno Ramos de Almeida no cinco dias.

Pois lamento, mas ainda não estou persuadido. Tenho visto aqui e ali referências ao Chile, e acho que podemos começar por aí. Por um conjunto de razões que ainda se discutem, o referendo acabou mesmo por ser convocado em 1988, permitiu uma votação sem fraudes e os seus resultados - inesperadamente desfavoráveis para Pinochet - foram aceites pelos militares. Foi o início da transição para a democracia no Chile. Mas daí até dizer-se que o Chile era uma democracia em 1988 ou até em 1987, 1986 ou antes vai alguma distância, que pelos vistos Nuno Ramos de Almeida tem alguma dificuldade em discernir. Esta ideia de "validação" à posteriori do carácter democrático de um regime, através da qual se classifica como democrático todo o regime no qual o detentor do poder acaba por perder eleições, não deixa de ter um bom pedigree. Este belo livrinho usa-a, precisamente, para distinguir democracias de regimes não-democráticos. Mas se queremos ir por aqui e seguir os critérios de Przeworski e seus colegas, então temos de esperar que Chávez perca eleições presidenciais. Não me consta que tenha sido isso que sucedeu no passado Domingo.

De resto, é curioso que se mencione o caso do Chile e ninguém se tenha lembrado do caso...português. Em 1975, com alguma surpresa, quem ganhou as eleições não foi quem controlava as rédeas do poder. As eleições de 1975 tiveram, aliás, o condão especial de revelarem que o PCP e os sectores mais à esquerda do aparelho militar que tutelavam na altura o regime tinham muito menos apoio popular do que se julgava. Mas a não ser que Nuno Ramos de Almeida esteja preparado para nos explicar como, em 1975, Portugal era um regime democrático- coisa que, manifestamente, (ainda) não era - a derrota eleitoral dos detentores do poder não chega para definir um regime.

Chamo a atenção para um conjunto de estudos de Steven Levitsky e Lucan Way (obrigado Andrés pela lembrança). Levitsky e Way vêm escrevendo sobre aquilo que chamam "autoritarismos competitivos". Vale a pena ler com atenção:

"In competitive authoritarian regimes, formal democratic institutions are widely viewed as the principal means of obtaining and exercising political authority. Incumbents violate those rules so often and to such an extent, however, that the regime fails to meet conventional minimum standards for democracy. (...) Competitive authoritarianism must be distinguished from democracy on the one hand and full-scale authoritarianism on the other. Modern democratic regimes all meet four minimum criteria: 1) Executives and legislatures are chosen through elections that are open, free, and fair; 2) virtually all adults possess the right to vote; 3) political rights and civil liberties, including freedom of the press, freedom of association, and freedom to criticize the government without reprisal, are broadly protected; and 4) elected authorities possess real authority to govern, in that they are not subject to the tutelary control of military or clerical leaders. Although even fully democratic regimes may at times violate one or more of these criteria, such violations are not broad or systematic enough to seriously impede democratic challenges to incumbent governments. In other words, they do not fundamentally alter the playing field between government and opposition. (...) In competitive authoritarian regimes, by contrast, violations of these criteria are both frequent enough and serious enough to create an uneven playing field between government and opposition. Although elections are regularly held and are generally free of massive fraud, incumbents routinely abuse state resources, deny the opposition adequate media coverage, harass opposition candidates and their supporters, and in some cases manipulate electoral results. Journalists, opposition politicians, and other government critics may be spied on, threatened, harassed, or arrested. Members of the opposition may be jailed, exiled, or—less frequently—even assaulted or murdered. Regimes characterized by such abuses cannot be called democratic."

E há um artigo interessante na Foreign Policy de Janeiro do ano passado que explora a aplicação do conceito ao caso da Venezuela.

Há muita gente que discorda de Levitsky e Way. Não quero com tudo isto desvalorizar os resultados do referendo de Domingo passado, nem aquilo que eles nos podem dizer sobre a natureza do regime ou as suas perspectivas de mudança e evolução. Nem sequer estou certo se consigo, para já, chegar a um veredicto sobre se a Venezuela é ou não é uma democracia. Mas não me parece que perder um referendo chegue, por si só, para esse veredicto.

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