No Arrastão, Daniel Oliveira escreve sobre o conceito de democracia, as condições favoráveis ao seu "aprofundamento" ou "qualidade" e sobre a aplicação dos pontos anteriores ao caso da Venezuela. Não posso nem quero discutir todos os pontos, mas há um que me parece central. Segundo o Daniel, na ponderação da designação de um determinado regime como ditadura ou democracia temos de tomar em conta não apenas a nossa avaliação mas também a avaliação subjectiva daqueles quer vivem sob esse regime.
"O passo que se dá para passar a chamar ditadura a um regime (partindo do principio que quem lhe chama outra coisa o está a apoiar) é, para mim, um passo que deve ser ponderado. E nessa ponderação deve contar a nossa avaliação mas também a avaliação daqueles que vivem nesse regime."
O meu ponto fulcral de discordância está precisamente aqui. Quando abordamos estes assuntos, quanto mais não seja por questões de rigor analítico, não convém confundir num único conceito diferentes dimensões da realidade. Se eu tiver uma definição de "democracia" - como o Daniel pelos vistos tem ("eleições livres, liberdade de organização, liberdade de expressão, liberdade de imprensa e separação de poderes") - eu posso dizer se a Venezuela é ou não uma "democracia" independentemente daquilo que saiba sobre as opiniões subjectivas dos cidadãos venezuelanos. E a resposta é simples: não é. Um país onde há abundantes casos documentados de intimidação dos eleitores pelo governo, de silenciamento de meios de comunicação social oposicionistas, onde a lista de signatários do referendo anti-Chávez é usada activamente para discriminação no acesso à função pública, onde associações financiadas por países estrangeiros são perseguidas e onde não há controlo civil do aparelho militar não pode ser vista como uma democracia nos termos da definição do próprio Daniel.
Para quê misturar isto com a avaliação subjectiva dos eleitores ou com indicadores de desempenho económico ou social? Nada nos impede de, depois de constatarmos que a Venezuela deixou de ser um regime democrático, constatarmos também que Chávez tem muito apoio popular, que o nível de "satisfação com a democracia" é muito elevado ou até que as desigualdades sociais ou a pobreza possam ter diminuído (não sei se é assim, mas para o caso não interessa). Ou podemos até chegar à conclusão que muitos dos "democratas" que se opõem a Chávez também não são flor que se cheire. Não sei. Mas separar as coisas é condição indispensável para percebermos, por exemplo, se há relação entre umas e outras. Não posso é meter tudo isto dentro de um mesmo conceito. Em todos os inquéritos deste género, o país no mundo onde o nível de "satisfação com a democracia" é mais elevado é Singapura. Devemos então achar que Singapura é uma democracia só porque os cidadãos acham que aquilo é uma democracia e estão satisfeitos? E como lidamos com o enorme apoio popular a Putin na Rússia? Ou o apoio das classes médias chinesas ao regime e ao partido?
Depois, a questão do "consenso". Ter-me-ei explicado mal, mas tento corrigir. Na maior parte das "democracias ocidentais", também não há consenso sobre o que significa "democracia". Há quem ache que "eleições livres, liberdade de organização, liberdade de expressão, liberdade de imprensa e separação de poderes" são condições suficientes. E há quem ache que são condições necessárias mas não suficientes, fazendo-as acompanhar de "condições para que cada individuo possa determinar o rumo a dar à sua vida através das suas escolhas pessoais e da participação nas escolhas colectivas". Tudo bem. Contudo, o ponto sobre a Venezuela (e muitas novas democracias, "semi-democracias" ou "semi-autoritarismos") é outro: pelos vistos, há muita gente para quem "eleições livres, liberdade de organização, liberdade de expressão, liberdade de imprensa e separação de poderes" não são nem suficientes nem necessárias para que considerem o regime uma "democracia". E isso é importante saber, especialmente porque essas condições "culturais" estão fortemente relacionadas com a criação de oportunidades para lideranças autoritárias, golpes, e uma geralmente baixa qualidade da democracia.
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