Esta notícia é interessante e intrigante. Parto sempre do princípio que os actores políticos são racionais e conhecem muito melhor a estrutura de custos e benefícios de uma decisão do que os "analistas" e "comentadores". Logo, quando não percebo uma decisão, tendo a concluir imediatamente que não tenho informação ou argúcia suficiente para a perceber. É este o caso: não entendo a posição de António Costa, logo, haverá qualquer coisa que não estou a ver bem.
O que me parecia que o "Não" tinha de fazer nesta campanha, e tem feito muito bem, é com que os eleitores não se limitem a ver neste referendo apenas uma decisão sobre a "despenalização do aborto", reenquadrando o tema de forma a que ele apareça como um referendo sobre o respeito pela vida, sobre a ordem social e moral onde queremos viver e sobre onde vai parar o dinheiro dos nossos impostos, por exemplo. E o "Não" teria também de sugerir, como tem feito, a existência de uma incerteza fundamental sobre o "day after" de uma vitória do "Sim": aumento do número de abortos, desregulação, abortos a passarem à frente de intervenções cirurgicas, despenalização "na prática" de abortos depois das 10 semanas, etc, etc, etc.
Isto parece-me uma boa estratégia a dois níveis. Por um lado, joga bem com o facto dos eleitores serem avessos ao risco: o que existe pode ser mau, mas se o que vem tanto pode ser melhor como pode ser pior, é melhor ficar como estamos. Por outro lado, como o "day after" de uma vitória do "Sim" pode ter várias configurações diferentes, importa que o eleitor o conceba como trazendo aquela que é a configuração mais radical de todas: o modelo de "período" - escolha livre ilimitada da mulher dentro de um determinado período de tempo - em vez de um modelo de "distress", em que, apesar da decisão última ser da mulher dentro de um determinado período e dessa decisão não ser penalizada, o aborto continua a ser visto como excepção e alguma espécie de aconselhamento ou mesmo dissuasão são obrigatórios, solução, de resto, comum na Europa. Visto à luz da primeira alternativa, o "Sim" pode aparecer aos eleitores como sendo demasiado extremista e radical, desmobilizando os moderados e reduzindo os votantes - como sucedeu em 1998 - aos "núcleos duros" de cada opção.
Nestas circunstâncias, sabendo como praticamente metade dos portugueses acha que a "vida" começa na concepção - mesmo que não vejam necessariamente essa vida como detentora dos mesmos direitos de uma pessoa humana - ou que a maioria dos portugueses acha que a escolha da mulher não pode ser ilimitada, o "Sim" teria de fazer duas coisas. Uma seria abandonar o discurso da "barriga é minha". Isso foi feito, apesar de tudo, com consideráveis rigor e disciplina. A outra seria tentar persuadir os eleitores - partindo do princípio que tal coisa é possível - que o "day after" de uma vitória do "Sim" não traria necessariamente incerteza, desregulação e radicalismo, mas sim uma solução que, apesar de tudo, poderia aparecer como moderada, de compromisso, e logo de equilíbrio e estável para o futuro. Que, uma vez mais, o poder político não iria usar o referendo apenas para se desresponsabilizar, obtendo uma decisão dos eleitores mas deixando depois o "day after" ao acaso. No passado, o "Não" sempre tomou muita atenção a este aspecto, explicando que, apesar de defender a manutenção da penalização, haveria no "day after" de uma vitória do "Não" um esforço em matéria de planeamento familiar e de apoio social.
António Costa, contudo, quer silêncio absoluto sobre o "day after". Do ponto de vista estrito do resultado do referendo, a decisão parece, à primeira vista, péssima. Mas é possível que António Costa ache que vitória do "Sim" está "no papo", ou que, apesar das dúvidas, é sempre preferível não se comprometer com nada que não saiba se vai querer cumprir. Ele lá saberá.
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