Em tempos que já lá vão, quando fazia investigação para uma tese de doutoramento sobre o Tribunal Constitucional, encontrei uma passagem nos debates na AR em 1982 que me impressionou bastante. O que se debatia era uma coisa muito técnica, mas com implicações políticas importantes: a saber, a quantos deputados se deveria dar o direito de solicitar a fiscalização sucessiva das leis junto do TC. O projecto da FRS, à qual a ASDI de Jorge Miranda pertencia, previa que esse direito devia ser concedido a qualquer grupo parlamentar, ou seja, dando à ASDI (e à UEDS) o poder de solicitar essa fiscalização. O PCP, por seu lado, propunha 1/10 dos deputados, o que daria a si próprio essa possibilidade, mas não aos grupos parlamentares mais pequenos. A AD estava inicialmente contra a possibilidade de que os deputados pudessem sequer iniciar esta litigância, temendo que o PCP a usasse de forma desbragada.
Agora não tenho tempo para procurar as páginas do DAR onde o tema foi discutido, mas recordo a surpresa geral com que a intervenção de Jorge Miranda foi recebida. Miranda defendeu que, sabendo bem que o projecto da FRS convinha à ASDI, achava mal. Achava que os parlamentares deveriam poder iniciar a sucessiva, mas que importava colocar alguns limites, exigindo que uma proporção significativa de deputados subscrevessem o pedido, de forma a evitar uma trivialização da litigância constitucional. Lembro-me inclusivamente que ficou tudo tão pasmado com a sua intervenção que houve um deputado, não me recordo quem, que alertou Jorge Miranda para o facto de que a ideia que estava a defender ir prejudicar o seu próprio partido, mas que lhe agradecia a posição, dado que facilitaria o consenso. Ao que, se não erro, JM respondeu que tomava essa posição por questões de princípio, independentemente de isso ir prejudicar o seu grupo parlamentar. Acabou por haver acordo em torno da proposta do PCP e a ASDI ficou sem direito de iniciar a sucessiva.
Apesar de tudo o resto de muito mais importante que Jorge Miranda fez na sua vida, é disto que me lembro quando penso nele. Nunca tinha visto nada assim, e nunca mais voltei a ver.
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4 comentários:
Caro Pedro Magalhães, Obrigado pelo texto publicado. Na verdade, também recordo o episódio que relata e agora que o seu texto o trouxe à memória, revivo a forte impressão que a postura de JM também me suscitou... aliás, mais tarde, em aulas de uma pós-graduação em Estudos Europeus, quando tive oportunidade de o contactar directamente, confirmei a sua vibrante e humilde idoneidade.
Ana Paula Fitas
Não conhecia esse episódio, mas não me surpreeende nem um pouco. Fui aluno do Prof. JM e, apesar de uma excessiva atitude paternalista para uma academia, conheço bem as suas qualidades pessoais e intelectuais. É um constitucionalista emérito, um homem isento, um humanista e de elevado sentido ético e público.
Dito isto, não creio que esteja em causa, neste desagradável episódio da escolha do Provedor de Justiça, as qualidades de JM, como certamente não estiveram as de Laborinho Lúcio ou de António Arnaut (se é que estes nomes foram apresentados na negociação).
Julgo que se trata, na esteira do que sugere Paulo Gorjão, mais de uma questão pessoal entre JS e MFL, cujas relações parece estarem a tornar-se insuportáveis.
Nenhum sai bem na fotografia, sobretudo JS que, tendo aqui oportunidade de mostrar que Nascimento Rodrigues ("Eles comem tudo e não deixam nada") não foi imparcial, acaba por confirmar a imagem de obstinação e de poder absoluto que se tem construído.
"Nunca tinha visto nada assim, e nunca mais voltei a ver."
Na Assembleia da República não sei, que é um meio que não frequento. Mas noutros lados, pelos vistos mais saudáveis, há muita gente honesta e decente com atitudes igualmente nobres. Em percentagem da população serão poucos, mas enfim, o mundo não está totalmente perdido. :-)
Claro que sim. Talvez devesse ter adicionado "na política".
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