O que fazer quando todos os factos contrariam as nossas teorias? Capitular? Nunca. A solução é torná-las invulneráveis aos factos. Fazer com que sejam "infalsificáveis", formulando-as de tal modo que se tornem insusceptíveis de serem refutadas (ou confirmadas) pelos dados da realidade.
Rui Ramos, discutindo a invasão do Iraque, fornece-nos hoje no Público uma amostra deste tipo de estratégia argumentativa: "Um presidente Gore, acolitado por Lieberman (tão "falcão" como Cheney) teria feito o mesmo [que a administração Bush]". E eis-nos assim transportados para um mundo alternativo, visitável apenas com as asas da imaginação, invulnerável a qualquer confronto com o mundo real.
Contudo, essa invulnerabilidade é só aparente. Apesar de nunca podermos vir a observar se uma presidência Gore agiria da mesma forma que uma presidência Bush, sabemos qual é premissa na base da qual Rui Ramos chega a essa conclusão: a de que "os EUA tinham esgotado o saco de truques para contar Saddam", ou seja, a de que a invasão era inevitável. Rui Ramos vende-nos isto como um axioma (o "óbvio", suponho, quanto há uma semana nada o era). Mas era precisamente isto que merecia demonstração empírica, em vez de ser apresentado como uma "verdade auto-evidente". E não é, claro, como qualquer ser humano que tenha lido algum relato sobre o processo de inspecções ou sobre o processo de tomada de decisão no interior da administração Bush (mesmo as que não descrevem a invasão com antipatia) facilmente poderia constatar. E é aqui que um artigo erudito e elegante, como sempre, revela aquilo que o torna absolutamente inútil: o seu total - e aparentemente consentido ou mesmo deliberado - divórcio da realidade.
Inútil e, num certo sentido, nocivo: afinal, como se pode ler num artigo de Mark Danner publicado na penúltima NYRB e que dá o título a este post, foi este divórcio da realidade, antes, durante e depois da invasão, que produziu o desastre que já ninguém consegue evitar reconhecer.
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